Nesta aba será abordado o contexto da Copa de 1970, no México, e como o governo brasileiro usou uma das, se não, a melhor, seleção de todos os tempos a seu favor.
O uso do futebol-arte para fins políticos
Voltando para o âmbito esportivo, em 1970, o Brasil disputaria a Copa do Mundo no México com uma das, se não a melhor, seleção de todos os tempos, muito conhecida pelo seu “futebol-arte”, uma assinatura brasileira. Com lendas como Carlos Alberto, o capitão dessa super-seleção, Jairzinho, que deixou seu gol em todos os jogos do mundial, Tostão, o “mineirinho de ouro”, Roberto Rivellino, criador do “elástico”, e o formidável Édson Arantes do Nascimento, conhecido mundialmente como Pelé, um dos maiores atletas de todos os tempos.
Depois de muitas incertezas após o fracasso de 1966, e as trocas de treinadores, inclusive a de João Saldanha, responsável por resgatar a confiança na seleção durante as eliminatórias, onde ele guiou o time de forma invicta para a Copa do Mundo, o time de 1970, comandado por Mário Jorge Lobo Zagallo, seria visto como exemplo pelo mundo.
Mas a questão é: qual a relação do regime militar com a Copa de 1970 no México?
Nesta época, aqui no Brasil, Emílio Garrastazu Médici governava o país, e a população enfrentava um dos períodos mais violentos da ditadura brasileira. O grande responsável por esses anos de maior opressão é o Ato Institucional nº 5.
Ao ser perguntado se o governo de Médici usou mesmo o tricampeonato mundial a seu favor, o jornalista Thiago Uberreich, especializado e amante de futebol, também escritor dos livros das vitórias do Brasil nas copas de 58, 62, 70 e 94, relata: “O título do Brasil foi muito utilizado pelo governo Médici. Porque para qualquer ditadura ou para qualquer governo, é interessante você usar uma vitória esportiva para você injetar ânimo na população, para você dizer que o Brasil é um país grande, é um país que não conhece derrotas”. E completa ao dizer que o governo Médici usou muito a conquista de 1970 para falar que o Brasil é um país importante, é um país que vai para frente, usando o termo ‘Brasil ame-o ou deixe-o’. Isso era bom para a ditadura, para manobrar a população, para a população tentar esquecer por um período os próprios problemas e confiar no Brasil.
O jornalista esportivo, Breiller Pires, relembra também o episódio de João Saldanha, técnico antecessor de Zagallo, que acabou saindo da seleção por uma espécie de “interferência presidencial”.
Saldanha tinha opiniões políticas contrárias ao governo muito fortes, isso porque ele ia no sentido contrário em comparação ao restante da comissão da CBD [Confederação Brasileira de Desportos], formada majoritariamente por militares. Thiago Uberreich fala sobre isso: “Na comissão técnica da seleção de 70, você tem militares. O chefe da delegação era um brigadeiro, era um militar. Você tem esse entorno da Seleção de 70, ocupado pelos militares”. Mas não foi só isso que deixou o ambiente insustentável para João. A polêmica convocação de Dario José dos Santos, popularmente conhecido como Dadá Maravilha, foi a gota d’água para que Saldanha deixasse o sonho de conquistar o tricampeonato.
Breiller relata que todo o comando da Confederação Brasileira de Desportos tinha uma ligação forte, se não faziam parte das forças militares. Para ele, essa relação dos militares com a seleção foi o principal ‘movimento’ que deixou claro a utilização da seleção para tentar amenizar um pouco os feitos da ditadura, já que era vivido, naquele momento, a fase mais pesada, mais sangrenta e violenta destes 21 anos.
Corte da entrevista com o jornalista Breiller Pires
Ele diz que o principal elemento era a instrumentalização das instituições, porque naquele momento o regime militar entrou de uma maneira tão agressiva nas instituições brasileiras, que as escolas eram militarizadas, os clubes de futebol eram militarizados, e a própria CDB era militarizada. Então toda a estrutura do esporte brasileiro tinha ali um regimento que era próprio das forças armadas, e isso totalmente alinhado com o que vinha do regime. Ele afirma que “esses valores eram propagados ali, quase que como uma cartilha, desde a base, com a iniciação esportiva nas escolas, até chegar à seleção principal.”
Breiller relata um pouco também a respeito da saída de Saldanha: “Além desse cerceamento da comissão técnica por militares, foi de uma ingerência direta do Médici, que passou ali a fazer uma campanha pública pela convocação do Dario, da Maravilha. E isso irritou muito o Saldanha, com o jeitão dele, que já dizia que não ia convocar e eles bateram de frente. Era menos sobre Médici gostar do futebol do Dadá e mais uma tentativa de minar o trabalho do Saldanha, porque ali era uma imposição que o Médici sabia que o Saldanha não ia acatar e com isso ele quis, de certa forma, desestabilizar o trabalho e forçar mesmo uma saída”. E complementa ao dizer que Saldanha foi substituído por Zagallo, praticamente às vésperas da Copa do Mundo. “Se perguntar hoje para as pessoas da CBD daquela época, que ainda estão vivas, vão dizer que não teve um pedido de demissão formal da presidência, mas foi de uma maneira pouco sutil, digamos, mas de ir minando o trabalho aos poucos até que o ambiente se tornasse insustentável para o Saldanha”.
Imagem da capa do livro "1970, o Brasil é tri" de Thiago Uberreich.
Thiago cita algumas ações do presidente em seu livro “1970, o Brasil é tri”, como mostra em um recorte da Folha de S. Paulo, do dia seguinte do título, onde Médici saiu “para o meio do povo, enrolado em uma bandeira brasileira”, na frente do Palácio, e fez algumas embaixadinhas.
Uberreich menciona novamente sua obra ao falar de um momento em que Emílio tenta ‘forçar’ essa relação entre ele e o futebol: “No capítulo em que eu falo sobre a comemoração, eu digo o seguinte: em Brasília, os campeões do mundo foram recebidos por uma multidão de 70 mil pessoas na Praça dos Três Poderes, em Brasília, um helicóptero jogava papeizinhos com a seguinte mensagem ufanista: ‘Somente com a nossa união, somente com a ordem, com a soma da vontade de todos, com a soma da energia de todos, com o trabalho, serenidade, coragem, inteligência, determinação e patriotismo, com a participação de todos os brasileiros, haveremos de fazer a década que se inicia sobre o signo da taça de ouro, uma referência à taça Julie Rimet, que foi conquistada, a década de ouro do Brasil’. Ou seja, era o governo militar usando a conquista de 1970 para injetar uma espécie de ânimo na população.”
Corte da entrevista com o jornalista Thiago Uberreich
Edson Arantes do Nascimento, o gigante Pelé, uma das maiores figuras, não só dessa copa, mas do futebol mundial, foi muito utilizada pela ditadura. Ele era uma espécie de “garoto propaganda” das ações realizadas pelo governo, segundo Thiago. O jornalista ainda conta que em 74, quando o país era governado por Geisel, a filha do presidente tenta convencer Pelé a jogar a copa do ano, pois seria de grande interesse do governo que ele jogasse, para elevar ainda mais o nome do país para o resto do mundo.
O uso do Pelé foi algo completamente intencional e estratégico. Como Breiller destaca: "‘o regime militar sabia do valor que existia em posar ao lado de um ídolo, e, de certa forma, surfar nesse sucesso da seleção, ainda mais em um país como o Brasil, conhecido como o país do futebol. Naquela época, o Pelé, por exemplo, era bicampeão mundial pela seleção e pelo Santos." Segundo o jornalista, que entrevistou o Rei do Futebol anos após aquela Copa, recusar um pedido do presidente teria uma repercussão negativa para o maior ídolo do futebol brasileiro. Na entrevista, o próprio Pelé admitiu estar ciente de como o governo usava sua imagem, mas afirmou que tinha poucas opções, pois a recusa seria mal vista.
No entanto, enquanto Pelé aceitava esse papel, outros atletas mostraram resistência e se posicionaram contra a ditadura militar. Como ocorreu com a Democracia Corinthiana, doze anos depois da Copa de 70, um dos maiores marcos de infusão da política no esporte brasileiro. Essa luta liderada por Sócrates, Casagrande, Wladimir e Zenon, entre outros jogadores, foi uma verdadeira luta pela democracia dentro e fora de campo.
Além disso, figuras como Eduardo Gonçalves de Andrade, mais conhecido como Tostão, que se destacava por sua postura politizada. O jogador vinha de uma família de classe média, além de ser formado em medicina, então, do elenco, o “Mineirinho de Ouro” era o que tinha mais noção do que era o regime militar, e Breiler complementa: “Tanto é que, desses atletas, dos grandes craques daquele time, ele foi o que soube preservar mais a imagem, não se expôs tanto ao lado de figuras do regime.”
A resistência de Tostão pode parecer menor comparada a figuras como Reinaldo, Casagrande ou Sócrates, mas ele enfrentou a fase mais dura do regime. Breiller traça um pouco desta comparação: “O Reinaldo e o Casagrande, Sócrates, eles surgem num período, e eles se manifestam politicamente num período, em que o regime militar já estava enfraquecido, era um período de distensão, e até de clamores populares pela redemocratização. E, nesse período, era, não digo mais fácil, mas era menos ameaçador para um atleta se manifestar.”
Um exemplo marcante dessa resistência foi o exemplo do atacante Reinaldo na Copa da Argentina de 1978, onde ao marcar um gol, fez sua comemoração com o punho cerrado, simbolizando a luta contra a ditadura.
A coragem desses jogadores ajudou a abrir caminho para a expressão política no esporte, em um momento em que o Brasil começava a questionar os rumos do regime.